Encontramos
no conjunto do campo antropológico um certo número de tensões
importantes,
opondo a universalidade e as diferenças, a compreensão "por dentro" e a compreensão "por
fora", o ponto de vista do mesmo e o ponto de vista dos outros. . . sendo
assim a antropologia tem todas as chances de engajar-se em um impasse, em um desvio
em relação ao modo de conhecimento que persegue, toda vez que um dos pólos em
questão domina o outro.
Uma
pulsação bastante específica ritma o trabalho de todo etnólogo. O primeiro tempo
é o da aprendizagem através de um convívio assíduo e de uma verdadeira
impregnação por seu objeto. Trata-se de interpretar a sociedade estudada
utilizando os modos de pensamento dessa sociedade, deixando-se, por assim
dizer, naturalizar por ela.
A
inteligibilidade procurada pelos etnólogos não consiste apenas em compreender
uma sociedade da forma como seus atores sociais a vivem, mas também, em entender o que lhes escapa e só pode lhes
escapar. De fato, o que vivem os membros de uma determinada sociedade não
poderia ser compreendido situando-se apenas dentro dessa sociedade. O olhar
distanciado, exterior, diferente, do estranho, e inclusive a condição que torna
possível a compreensão das lógicas que escapam aos atores sociais. Ao
familiarizar-se com o que de início parecia estranho, o etnólogo vai tornar
estranho para esses atores o que lhes parecia familiar.
Nenhuma
sociedade é de fato perfeitamente transparente a si mesma, nenhuma escapa de
suas armadilhas conscientes. Cada grupo humano, como também cada indivíduo,
fornece a si próprio e aos outros racionalizações de suas condutas, que
consistem em modelos conscientes que o etnólogo não deve cortejar e adaptar,
nem contornar e exorcizar, e sim analisar.
Alguns
etnólogos têm tendência a supervalorizar o discurso do outro, isto é, a
abandonar um modelo de pensamento por outro, quando o discurso sobre o outro
tende a dominar o discurso do outro, degenera habitualmente em um discurso à revelia
do outro, podendo contribuir na morte do outro (e na morte das civilizações).
Levi-Strauss
compara freqüentemente a antropologia à astronomia. Qualifica a primeira de
"astronomia das ciências sociais", e diz do olhar antropológico que é um "olhar de astrônomo". É a
proximidade desse olhar sobre sociedades longínquas que permite notadamente que
o pesquisador, de volta a sua própria sociedade, possa olhá-la à distância
Fazer
antropologia é segurar as duas extremidades da cadeia e afirmar com a mesma força:
existe, como escreve Mauss, uma "unidade do gênero humano" tal
costume, tal instituição, tal comportamento, estranhos a minha sociedade, são
realmente diferentes. Percebemos isso notadamente no caso do evolucionismo que
dissolve a alteridade na unidade, pois, como vimos, o "primitivo" não
é visto como sendo realmente diferente de nós. Encarna a forma social
ultrapassada do que fomos outrora, e é utilizado como a ilustração de um
processo único que sempre conduz ao idêntico.
A
abordagem tão exigente do etnógrafo, que evidencia as diferenças que observa,
termina dissolvendo-se no dogmatismo unitário da função. Essa acusação segundo
a qual o conhecimento dos outros estaria reduzido ao Saber verdadeiro por um
observador possuindo infalivelmente a verdade do observado, e procurando menos
o advento com os outros daquilo que não pensava, do que a verificação sobre os
outros daquilo que pensava, coloca um problema essencial: a única ciência é
ocidental?
Embora
não se trate de ciências, no sentido ocidental do termo, existem, em outras
culturas, formas de conhecimento cuja lógica não tem realmente nada a invejar
da nossa: por exemplo, as gramáticas indianas, os "saberes sobre o
corpo"asiáticos, ou ainda as instituições familiares tais como foram
elaboradas pelos aborígines australianos, tão complexas que precisamos, no
Ocidente, para compreendê-las, apelar para os recursos das matemáticas
modernas.
O
que é evidenciado nessa perspectiva é o caráter assimétrico da relação entre o
observador e o observado, a dominação que uma civilização estaria impondo deliberada
ou dissimuladamente a todas as outras, e a natureza, considerada repressiva, da
ciência, que seria a racionalização desse processo.
Considera-se
que o que é separado pela barreira das culturas não deve ser reunido, nem mesmo
pelo pensamento teórico. Disso decorre a oposição aos próprios conceitos de
homens e de antropologia, aos quais se prefere o de povo (no plural) e de
etnologia porque sabemos de fato que, quanto mais uma sociedade tende a
uniformizar-se, mais tende simultaneamente a diversificar-se.
Da
mesma forma, foi a influência, que parecia exclusivamente niveladora, da
revolução industrial do século XVIII que permitiu a radicalização dos
diferentes estatutos entre os grupos (as classes sociais). Mais uma vez, o
Brasil contemporâneo me parece particularmente revelador a esse respeito e nos
leva ainda mais adiante. A cultura popular não só resiste notavelmente a
cultura dominante, como também, freqüentemente, consegue se impor a esta, de
uma maneira dificilmente imaginável no Ocidente.
A
excelente imagem que se deve ter dos outros se acompanha de fato da má imagem
que se tem de si (cf., por exemplo, Jean Monod, 1972, que se acusa de ser um
"rico canibal"). Ou seja, há uma recusa de assumir sua própria
identidade, o que tem como corolário a culpa ou a difamação da ocidentalidade. Em
suma, tudo se passa como se esse protesto indignado { o fato de querer devolver
sua dignidade aos outros { devesse passar inelutavelmente por um processo
consistindo em acusar-se a si próprio de indignidade
A
incompreensão entre os que enfatizam a unidade fundamental da cultura e os que
privilegiam a diversidade, supostamente irredutível, das culturas, decorre do
fato de que não nos situamos, nos dois casos, no mesmo nível de investigação do
social.
Pelo
contrário, a análise da variabilidade cultural evidencia o que não vejo
diretamente quando passo de uma cultura para outra, mas me permite perceber que
pertenço a uma figura particular da cultura. De um lado, portanto, a preocupação
do concreto, de outro, a exigência, para dar conta deste, da construção científica.
O
primeiro risco, que qualificaria de tentação empírica, vem da submissão dócil
ao campo, do registro ficticiamente passivo dos "fatos", que dá ao
observador a impressão de situar-se do lado das coisas, de estar junto delas.
Não
há, de fato, ciência, nem atividade crítica nem mesmo coleta de fatos sem
teoria. A rejeição desta última leva inclusive inevitavelmente a adotar a teoria
do senso comum, a "opinião", a ideologia do momento, a que estiver
vigente na sociedade que se estuda ou á qual pertencemos.
O
trabalho do antropólogo não consiste em fotografar, gravar, anotar, mas em
decidir quais são os fatos significativos, e, além dessa descrição (mas a
partir dela), em buscar uma compreensão das sociedades humanas.
Por
outro lado, uma teoria científica nunca é o reflexo do real, e sim uma construção
do real. Os fatos etnográficos são fatos cientificamente construídos, a partir
de nossas observações, mas também contra nossas observações, nossas impressões,
as interpretações dos interessados e nossas próprias interpretações espontâneas.
Podemos
reduzir a inadequação entre os dois pensamentos de que acabamos de falar,
traduzindo-a em uma outra linguagem. Por exemplo, quando um número considerável
de indivíduos que compõem a sociedade brasileira tende a interpretar suas dificuldades
(sociais, psicológicas, biológicas) em termos religiosos, podemos dizer que se
trata de "ilusão", de "projeção", de
"deslocamento"ideal de uma realidade mais "fundamental". Da
mesma forma, quando o pensamento tradicional clássica as coisas segundo
categorias cósmicas (a água, o ar, a terra, o fogo), podemos dizer que realiza
"sublimações" cujas
"verdadeiras" razões são sócioeconômicas.
Alguns
exemplos vão permitir mostrar que um certo número de condutas, observáveis em
outro lugar, são capazes de agir como reveladores de aspectos culturais
inteiros, cuidadosamente dissimulados em nossa cultura, o que permite afirmar,
com Georges Devereux, que o inconsciente de uma cultura pode ser encontrada no
consciente de uma outra.
O
objetivo da etnologia não é o de traduzir a alteridade nos moldes do que é,
para minha sociedade, conhecido e correto (o que equivaleria a suprimir essa
alteridade); nem o de estender a racionalidade às dimensões do universo, nos
modos missionários ou messiânicos da conquista (pois essa racionalidade é
provinciana, isto é, limitada no espaço e no tempo).
A
etnologia, pelo contrário, abre essa estreiteza monocultural. E, no entanto, para
que o próprio empreendimento que caracteriza "nossa disciplina, não apenas
como experiência e como aventura, mas como ciência, seja possível, algo desse
pensamento ocidental terá sido utilizado como mediador e como instrumento: não
uma cultura (a nossa) que serviria de referencial absoluto e daria sentido a fenômenos
que inicialmente não tinham, e sim um método, ocidental, é claro, pela sua
origem histórica e cultural, mas que subverte a racionalidade ocidental.
A
realidade, para o antropólogo, constitui-se do confronto de dois discursos
interpretativos que se juntam, e constituem, o primeiro, a realidade
normalizante do discurso "erudito"(do psiquiatra, do padre, do
professor primário. . .), o segundo, a realidade alucinada e desviante, mas que
é também a expressão de uma realidade social. A antropologia, portanto, só começa
a adquirir um estatuto científico partir do momento em que integra, para analisá-lo,
esse envolvimento do pesquisador (ao mesmo tempo psicoafetivo e sócio-histórico)
às voltas com a diferença.
A
separação teológica, filosófica, e depois científica, do homem e da natureza (especialmente
os animais, mas também nossa animalidade), do homem e de seu semelhante, a
separação do sujeito e do objeto, do sensível e do inteligível, constituem os
termos de uma tensão que, a meu ver, não admite Resolução em uma unidade
superior como em Hegel.
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