domingo, setembro 23, 2018

As Tensões Constitutivas Da Prática Antropológica


Encontramos no conjunto do campo antropológico um certo número de tensões
importantes, opondo a universalidade e as diferenças, a compreensão "por  dentro" e a compreensão "por fora", o ponto de vista do mesmo e o ponto de vista dos outros. . . sendo assim a antropologia tem todas as chances de engajar-se em um impasse, em um desvio em relação ao modo de conhecimento que persegue, toda vez que um dos pólos em questão domina o outro.

Uma pulsação bastante específica ritma o trabalho de todo etnólogo. O primeiro tempo é o da aprendizagem através de um convívio assíduo e de uma verdadeira impregnação por seu objeto. Trata-se de interpretar a sociedade estudada utilizando os modos de pensamento dessa sociedade, deixando-se, por assim dizer, naturalizar por ela.

A inteligibilidade procurada pelos etnólogos não consiste apenas em compreender uma sociedade da forma como seus atores sociais a vivem, mas também,  em entender o que lhes escapa e só pode lhes escapar. De fato, o que vivem os membros de uma determinada sociedade não poderia ser compreendido situando-se apenas dentro dessa sociedade. O olhar distanciado, exterior, diferente, do estranho, e inclusive a condição que torna possível a compreensão das lógicas que escapam aos atores sociais. Ao familiarizar-se com o que de início parecia estranho, o etnólogo vai tornar estranho para esses atores o que lhes parecia familiar.

Nenhuma sociedade é de fato perfeitamente transparente a si mesma, nenhuma escapa de suas armadilhas conscientes. Cada grupo humano, como também cada indivíduo, fornece a si próprio e aos outros racionalizações de suas condutas, que consistem em modelos conscientes que o etnólogo não deve cortejar e adaptar, nem contornar e exorcizar, e sim analisar.

Alguns etnólogos têm tendência a supervalorizar o discurso do outro, isto é, a abandonar um modelo de pensamento por outro, quando o discurso sobre o outro tende a dominar o discurso do outro, degenera habitualmente em um discurso à revelia do outro, podendo contribuir na morte do outro (e na morte das civilizações).

Levi-Strauss compara freqüentemente a antropologia à astronomia. Qualifica a primeira de "astronomia das ciências sociais", e diz do olhar antropológico que  é um "olhar de astrônomo". É a proximidade desse olhar sobre sociedades longínquas que permite notadamente que o pesquisador, de volta a sua própria sociedade, possa olhá-la à distância

Fazer antropologia é segurar as duas extremidades da cadeia e afirmar com a mesma força: existe, como escreve Mauss, uma "unidade do gênero humano" tal costume, tal instituição, tal comportamento, estranhos a minha sociedade, são realmente diferentes. Percebemos isso notadamente no caso do evolucionismo que dissolve a alteridade na unidade, pois, como vimos, o "primitivo" não é visto como sendo realmente diferente de nós. Encarna a forma social ultrapassada do que fomos outrora, e é utilizado como a ilustração de um processo único que sempre conduz ao idêntico.

A abordagem tão exigente do etnógrafo, que evidencia as diferenças que observa, termina dissolvendo-se no dogmatismo unitário da função. Essa acusação segundo a qual o conhecimento dos outros estaria reduzido ao Saber verdadeiro por um observador possuindo infalivelmente a verdade do observado, e procurando menos o advento com os outros daquilo que não pensava, do que a verificação sobre os outros daquilo que pensava, coloca um problema essencial: a única ciência é ocidental?

Embora não se trate de ciências, no sentido ocidental do termo, existem, em outras culturas, formas de conhecimento cuja lógica não tem realmente nada a invejar da nossa: por exemplo, as gramáticas indianas, os "saberes sobre o corpo"asiáticos, ou ainda as instituições familiares tais como foram elaboradas pelos aborígines australianos, tão complexas que precisamos, no Ocidente, para compreendê-las, apelar para os recursos das matemáticas modernas.


O que é evidenciado nessa perspectiva é o caráter assimétrico da relação entre o observador e o observado, a dominação que uma civilização estaria impondo deliberada ou dissimuladamente a todas as outras, e a natureza, considerada repressiva, da ciência, que seria a racionalização desse processo.

Considera-se que o que é separado pela barreira das culturas não deve ser reunido, nem mesmo pelo pensamento teórico. Disso decorre a oposição aos próprios conceitos de homens e de antropologia, aos quais se prefere o de povo (no plural) e de etnologia porque sabemos de fato que, quanto mais uma sociedade tende a uniformizar-se, mais tende simultaneamente a diversificar-se.

Da mesma forma, foi a influência, que parecia exclusivamente niveladora, da revolução industrial do século XVIII que permitiu a radicalização dos diferentes estatutos entre os grupos (as classes sociais). Mais uma vez, o Brasil contemporâneo me parece particularmente revelador a esse respeito e nos leva ainda mais adiante. A cultura popular não só resiste notavelmente a cultura dominante, como também, freqüentemente, consegue se impor a esta, de uma maneira dificilmente imaginável no Ocidente.

A excelente imagem que se deve ter dos outros se acompanha de fato da má imagem que se tem de si (cf., por exemplo, Jean Monod, 1972, que se acusa de ser um "rico canibal"). Ou seja, há uma recusa de assumir sua própria identidade, o que tem como corolário a culpa ou a difamação da ocidentalidade. Em suma, tudo se passa como se esse protesto indignado { o fato de querer devolver sua dignidade aos outros { devesse passar inelutavelmente por um processo consistindo em acusar-se a si próprio de indignidade

A incompreensão entre os que enfatizam a unidade fundamental da cultura e os que privilegiam a diversidade, supostamente irredutível, das culturas, decorre do fato de que não nos situamos, nos dois casos, no mesmo nível de investigação do social.

Pelo contrário, a análise da variabilidade cultural evidencia o que não vejo diretamente quando passo de uma cultura para outra, mas me permite perceber que pertenço a uma figura particular da cultura. De um lado, portanto, a preocupação do concreto, de outro, a exigência, para dar conta deste, da construção científica.

O primeiro risco, que qualificaria de tentação empírica, vem da submissão dócil ao campo, do registro ficticiamente passivo dos "fatos", que dá ao observador a impressão de situar-se do lado das coisas, de estar junto delas.

Não há, de fato, ciência, nem atividade crítica nem mesmo coleta de fatos sem teoria. A rejeição desta última leva inclusive inevitavelmente a adotar a teoria do senso comum, a "opinião", a ideologia do momento, a que estiver vigente na sociedade que se estuda ou á qual pertencemos.

O trabalho do antropólogo não consiste em fotografar, gravar, anotar, mas em decidir quais são os fatos significativos, e, além dessa descrição (mas a partir dela), em buscar uma compreensão das sociedades humanas.

Por outro lado, uma teoria científica nunca é o reflexo do real, e sim uma construção do real. Os fatos etnográficos são fatos cientificamente construídos, a partir de nossas observações, mas também contra nossas observações, nossas impressões, as interpretações dos interessados e nossas próprias interpretações espontâneas.

Podemos reduzir a inadequação entre os dois pensamentos de que acabamos de falar, traduzindo-a em uma outra linguagem. Por exemplo, quando um número considerável de indivíduos que compõem a sociedade brasileira tende a interpretar suas dificuldades (sociais, psicológicas, biológicas) em termos religiosos, podemos dizer que se trata de "ilusão", de "projeção", de "deslocamento"ideal de uma realidade mais "fundamental". Da mesma forma, quando o pensamento tradicional clássica as coisas segundo categorias cósmicas (a água, o ar, a terra, o fogo), podemos dizer que realiza "sublimações"  cujas "verdadeiras" razões são sócioeconômicas.

Alguns exemplos vão permitir mostrar que um certo número de condutas, observáveis em outro lugar, são capazes de agir como reveladores de aspectos culturais inteiros, cuidadosamente dissimulados em nossa cultura, o que permite afirmar, com Georges Devereux, que o inconsciente de uma cultura pode ser encontrada no consciente de uma outra.

O objetivo da etnologia não é o de traduzir a alteridade nos moldes do que é, para minha sociedade, conhecido e correto (o que equivaleria a suprimir essa alteridade); nem o de estender a racionalidade às dimensões do universo, nos modos missionários ou messiânicos da conquista (pois essa racionalidade é provinciana, isto é, limitada no espaço e no tempo).

A etnologia, pelo contrário, abre essa estreiteza monocultural. E, no entanto, para que o próprio empreendimento que caracteriza "nossa disciplina, não apenas como experiência e como aventura, mas como ciência, seja possível, algo desse pensamento ocidental terá sido utilizado como mediador e como instrumento: não uma cultura (a nossa) que serviria de referencial absoluto e daria sentido a fenômenos que inicialmente não tinham, e sim um método, ocidental, é claro, pela sua origem histórica e cultural, mas que subverte a racionalidade ocidental.

A realidade, para o antropólogo, constitui-se do confronto de dois discursos interpretativos que se juntam, e constituem, o primeiro, a realidade normalizante do discurso "erudito"(do psiquiatra, do padre, do professor primário. . .), o segundo, a realidade alucinada e desviante, mas que é também a expressão de uma realidade social. A antropologia, portanto, só começa a adquirir um estatuto científico partir do momento em que integra, para analisá-lo, esse envolvimento do pesquisador (ao mesmo tempo psicoafetivo e sócio-histórico) às voltas com a diferença.

A separação teológica, filosófica, e depois científica, do homem e da natureza (especialmente os animais, mas também nossa animalidade), do homem e de seu semelhante, a separação do sujeito e do objeto, do sensível e do inteligível, constituem os termos de uma tensão que, a meu ver, não admite Resolução em uma unidade superior como em Hegel.

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