O texto Dois reais (
pág 114) do livro Cabeça de Porco nos conta a historia real de um
personagem chamado Nélio que foi morto porque devia 2 reais a
traficantes de drogas. O traficante cobrava o debito sempre, mas Nélio era bom
de papo e se livrava do pagamento, no entanto, no mundo das drogas sempre chega
a hora do pagamento, ou seja, o traficante não sai perdendo e o mata com dois
tiros, Nélio fica sangrando como um porco.
Sabemos que a
construção de um discurso pelo sujeito depende de suas condições de produção,
essas condições de produção é o que caracteriza o discurso e o constituem como
objeto de análise.
O texto é narrado numa
favela, o morador da mesma convive com a exclusão no dia a dia: desde a falta
de estrutura das casas até a falta de um emprego digno. Chega um determinado
momento em que a única forma de conseguir sobreviver é trabalhar para os
traficantes. Como consequência dessa atividade criminosa, morrem muitos pais de
família e, para manter as mesmas condições de sustento, muitos jovens assumem o
posto que fora do pai, iniciando o ciclo de violência e morte para muitos
jovens.
O discurso, nesse
sentido, para além de sua postura política, passa a ser ornamentado por uma
perspectiva testemunhal, determinando a voz oriunda dos espaços periféricos
como a verdadeira forma de representação da miséria e da violência que assola
estes espaços.
Para Pêcheux, segundo Brandão,
No
discurso, as relações entre esses lugares, objetivamente definíveis acham-se
representadas por uma série de “formações imaginárias” que designam o lugar que
destinador e destinatário atribuem a si mesmo e ao outro a imagem que eles
fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. (BRANDAO, 2004, p.44)
A exemplo do
efeito produzido pelo discurso do texto “Dois Reais” na expressão “ Você me
aguarde”que representa uma ideologia repleta de valores morais pertencentes ao
cenário do tráfico, esse sujeito
traficante, que ameaça, que mata por dois reais evidencia uma formação
ideológica que o rege, no caso a criminalidade.
Esses lugares citados por Brandão acima e essas
relações são conflituosas. No mundo do crime e da violência, há uma ética e uma
moral; no entanto, esses conceitos têm seus valores reformulados perante a
sociedade que rege o tráfico. Nessa sociedade capitalista, dois reais são uma
dívida que pode ser paga com a própria vida. Nélio devia dois reais; não pagou
e foi brutalmente assassinado perante os amigos: A expressão “Nélio ficou
sangrando que nem um porco” nota-se uma intertextualidade com o Naturalismo,
foi atribuído ao personagem
características animalescas. Nélio, quando é comparado a um animal,
passou a ser insignificante, pois um porco morto não faz falta à sociedade;
serve, antes, para alimentá-la. Infere-se, portanto, que Nélio foi mais um
“alimento” para a crescente violência da sociedade.
Assim, a animalização
da personagem é uma característica presente nas obras naturalistas, pois,
quando elas adquirem adjetivos comuns a de um animal, voltam ao seu passado, à
sua essência instintiva, e essa característica, segundo o Naturalismo, faz
parte do ser e dele se torna impossível se dissociar. Essa intertextualidade
torna os leitores mais próximos e sensíveis, com um olhar crítico para os
verdadeiros problemas sociais.
O trecho “ A esperança como dever (p.115-125),
do livro Cabeça de Porco, mais precisamente nas páginas em estudo ( 122-23) nos
descreve a esperança, do bandido como humano
apto a mudar e todas as implicações que uma mudança tem, a primeira nos
remete ao perdão, no sentido de regeneração do comportamento e a segunda o
perdão enquanto cidadão, ou seja, ao fato de ser absolvido por um julgamento
jurídico, nos traz uma esperança no sentido de que enquanto houver vida, há
esperança de mudança, no entanto nos mostra que a
única saída para a maioria deles é a morte; por isso, esse preceito de base
positivista pode ser questionado por um simples argumento: nem todo mundo que
se corrompeu irá morrer no universo do crime ou não conseguirá voltar a ser um
cidadão honesto.
A
formação discursiva é um conceito sofisticado e fundamental para que possamos entender o discurso que se pretende
analisar. O filósofo francês Michel Foucault (1997, p. 35) define formação
discursiva como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre
determinadas no tempo e no espaço e que definem em cada época dada e para cada
área social e econômica, geográfica ou lingüística dada as condições do
exercício da função enunciativa”.
A formação discursiva
desse texto é predominantemente religiosa, mas sabemos que enquanto outros discursos
se abrem a possibilidade para que haja a troca no processo comunicativo, no
discurso religioso, isso é limitado, pois quem fala sempre é a voz de Deus, por
meio de seus representantes. Dessa forma, podemos definir o discurso religioso
presente no texto como aquele que “[...] o homem faz falar a voz de Deus” (
ORLANDI, 1987, p.30).
Assim, no texto em
estudo há um discurso religioso que se faz presente a tentação e a intimidação,
a tentação porque agindo de forma como a doutrina é pregada pelos religiosos
representantes das igrejas, os fieis podem alcançar o reino dos céus e intimida
porque a não aceitação conduz a alma ao castigo, ou seja, ao inferno. Dessa
maneira, o discurso católico é ainda muito presente na sociedade brasileira,
mesmo muitos afirmando que não frequentam a igreja. Nesse sentido afirma
Brandão (1999, p. 23) “a ideologia se materializa nos atos concretos, assumindo
com essa objetivação um caráter moldador das ações”, assim sendo, o sujeito
inconscientemente toma um discurso da ideologia para si e o reproduz sem ao
menos perceber. Não existe um discurso religioso fora das religiões. Quando se ouve um discurso religioso, mesmo
que não seja de uma religião familiar, identificamos como um discurso religioso
e mesmo que o senso comum nos permita dizer que há muitos sujeitos que, nos
dias de hoje, distanciaram-se da igreja, os principais conceitos dessa
instituição ainda estão fortemente marcados em seus discursos.
Sabemos que para entendermos melhor esse formação
discursiva religiosa, outros discursos devem ser tomados em consideração como o
discurso da psicologia comportamental, muito forte na época, do individualismo,
do consumo, do anti-comunismo, e isso
nos infere aos direitos
humanos que fazem parte de uma formação discursiva que se poderia chamar de
cultura ocidental, que se impõe ao mundo por construções de discursos
hegemônicos ou até mesmo pela força. A grande maioria das pessoas que estão
sobre o planeta tem culturas que não
aceitam os direitos humanos como universais, persistindo assim um princípio determinista em que uma pessoa
criada na favela será sempre um marginal, dificilmente será vista como um
trabalhador ou que, uma vez bandido sempre bandido, não
merecendo assim o arrependimento dos seus pecados.
Referências:
BRANDÃO, Helena. Introdução à analise do
discurso. São Paulo: UNICAMP. 8. ed.
2002.
FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São
Paulo: Loyola, 1996.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de
Discurso: princípios e procedimentos. 9ª Ed., Campinas, SP. Pontes Editores,
2010
__________.
A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2ed. Campinas:
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