domingo, abril 17, 2016

Análise de discurso de trecho do livro Cabeça de Porco

O texto Dois reais ( pág 114) do livro Cabeça de Porco nos conta a historia real  de um  personagem chamado Nélio que foi morto porque devia 2 reais a traficantes de drogas. O traficante cobrava o debito sempre, mas Nélio era bom de papo e se livrava do pagamento, no entanto, no mundo das drogas sempre chega a hora do pagamento, ou seja, o traficante não sai perdendo e o mata com dois tiros, Nélio fica sangrando como um porco.
Sabemos que a construção de um discurso pelo sujeito depende de suas condições de produção, essas condições de produção é o que caracteriza o discurso e o constituem como objeto de análise.
O texto é narrado numa favela, o morador da mesma convive com a exclusão no dia a dia: desde a falta de estrutura das casas até a falta de um emprego digno. Chega um determinado momento em que a única forma de conseguir sobreviver é trabalhar para os traficantes. Como consequência dessa atividade criminosa, morrem muitos pais de família e, para manter as mesmas condições de sustento, muitos jovens assumem o posto que fora do pai, iniciando o ciclo de violência e morte para muitos jovens.
O discurso, nesse sentido, para além de sua postura política, passa a ser ornamentado por uma perspectiva testemunhal, determinando a voz oriunda dos espaços periféricos como a verdadeira forma de representação da miséria e da violência que assola estes espaços.
Para Pêcheux, segundo Brandão,

No discurso, as relações entre esses lugares, objetivamente definíveis acham-se representadas por uma série de “formações imaginárias” que designam o lugar que destinador e destinatário atribuem a si mesmo e ao outro a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. (BRANDAO, 2004, p.44)

A  exemplo do efeito produzido pelo discurso do texto “Dois Reais” na expressão “ Você me aguarde”que representa uma ideologia repleta de valores morais pertencentes ao cenário do tráfico,  esse sujeito traficante, que ameaça, que mata por dois reais evidencia uma formação ideológica que o rege, no caso a criminalidade.

Esses lugares citados por Brandão acima e essas relações são conflituosas. No mundo do crime e da violência, há uma ética e uma moral; no entanto, esses conceitos têm seus valores reformulados perante a sociedade que rege o tráfico. Nessa sociedade capitalista, dois reais são uma dívida que pode ser paga com a própria vida. Nélio devia dois reais; não pagou e foi brutalmente assassinado perante os amigos: A expressão “Nélio ficou sangrando que nem um porco” nota-se uma intertextualidade com o Naturalismo, foi  atribuído ao  personagem  características animalescas. Nélio, quando é comparado a um animal, passou a ser insignificante, pois um porco morto não faz falta à sociedade; serve, antes, para alimentá-la. Infere-se, portanto, que Nélio foi mais um “alimento” para a crescente violência da sociedade.
Assim, a animalização da personagem é uma característica presente nas obras naturalistas, pois, quando elas adquirem adjetivos comuns a de um animal, voltam ao seu passado, à sua essência instintiva, e essa característica, segundo o Naturalismo, faz parte do ser e dele se torna impossível se dissociar. Essa intertextualidade torna os leitores mais próximos e sensíveis, com um olhar crítico para os verdadeiros problemas sociais.
O trecho “ A esperança como dever (p.115-125), do livro Cabeça de Porco, mais precisamente nas páginas em estudo ( 122-23) nos descreve a esperança, do bandido como humano  apto a mudar e todas as implicações que uma mudança tem, a primeira nos remete ao perdão, no sentido de regeneração do comportamento e a segunda o perdão enquanto cidadão, ou seja, ao fato de ser absolvido por um julgamento jurídico, nos traz uma esperança no sentido de que enquanto houver vida, há esperança de mudança, no entanto nos mostra que a única saída para a maioria deles é a morte; por isso, esse preceito de base positivista pode ser questionado por um simples argumento: nem todo mundo que se corrompeu irá morrer no universo do crime ou não conseguirá voltar a ser um cidadão honesto.
            A formação discursiva é um conceito sofisticado e fundamental para que  possamos entender o discurso que se pretende analisar. O filósofo francês Michel Foucault (1997, p. 35) define formação discursiva como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço e que definem em cada época dada e para cada área social e econômica, geográfica ou lingüística dada as condições do exercício da função enunciativa”.
A formação discursiva desse texto é predominantemente religiosa, mas sabemos que enquanto outros discursos se abrem a possibilidade para que haja a troca no processo comunicativo, no discurso religioso, isso é limitado, pois quem fala sempre é a voz de Deus, por meio de seus representantes. Dessa forma, podemos definir o discurso religioso presente no texto como aquele que “[...] o homem faz falar a voz de Deus” ( ORLANDI, 1987, p.30).
Assim, no texto em estudo há um discurso religioso que se faz presente a tentação e a intimidação, a tentação porque agindo de forma como a doutrina é pregada pelos religiosos representantes das igrejas, os fieis podem alcançar o reino dos céus e intimida porque a não aceitação conduz a alma ao castigo, ou seja, ao inferno. Dessa maneira, o discurso católico é ainda muito presente na sociedade brasileira, mesmo muitos afirmando que não frequentam a igreja. Nesse sentido afirma Brandão (1999, p. 23) “a ideologia se materializa nos atos concretos, assumindo com essa objetivação um caráter moldador das ações”, assim sendo, o sujeito inconscientemente toma um discurso da ideologia para si e o reproduz sem ao menos perceber. Não existe um discurso religioso fora das religiões.  Quando se ouve um discurso religioso, mesmo que não seja de uma religião familiar, identificamos como um discurso religioso e mesmo que o senso comum nos permita dizer que há muitos sujeitos que, nos dias de hoje, distanciaram-se da igreja, os principais conceitos dessa instituição ainda estão fortemente marcados em seus discursos.
Sabemos que para entendermos melhor esse formação discursiva religiosa, outros discursos devem ser tomados em consideração como o discurso da psicologia comportamental, muito forte na época, do individualismo, do consumo, do anti-comunismo,  e  isso nos infere aos  direitos humanos que fazem parte de uma formação discursiva que se poderia chamar de cultura ocidental, que se impõe ao mundo por construções de discursos hegemônicos ou até mesmo pela força. A grande maioria das pessoas que estão sobre o planeta tem culturas que  não aceitam os direitos humanos como universais, persistindo assim um  princípio determinista em que uma pessoa criada na favela será sempre um marginal, dificilmente será vista como um trabalhador  ou  que, uma vez bandido sempre bandido, não merecendo assim o arrependimento dos seus pecados.



Referências:


BRANDÃO, Helena. Introdução à analise do discurso. São Paulo: UNICAMP. 8. ed.
2002.

FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso.  São Paulo: Loyola, 1996.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 9ª Ed., Campinas, SP. Pontes Editores, 2010

__________. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2ed. Campinas:

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