sexta-feira, agosto 16, 2013

Um olhar sobre o uso da língua no livro Dona Flor e seus dois maridos

Um olhar sobre o uso da língua no livro Dona Flor e seus dois maridos


A língua é um elemento importante na caracterização de um povo, Nadin da Silva (2008, p.78), pontua alguns princípios mais importantes dessa língua , tais como, concebe a língua como um sistema que inclui a gramática, a semântica e a pragmática e outro aspecto considera os textos ou discursos especializados como base de comunicação especializada, portanto, esses discursos fazem parte da língua natural.
Muitos dizem que a língua Portuguesa é o uniforme. Alguns  autores como Ilari e Basso ( 2006) argumentam que essa afirmação é um mito, pois esconde em si um nacionalismo exacerbado, uma visão limitada do uso da língua e uma negação da variação, como se os falantes não se adaptassem aos contextos de produção de textos orais e escritos. Seguindo esse pensamento, Marcos Bagno ( 2007, p.40) acrescenta que, para a sociolinguística, a variação é “ estruturada, organizada, condicionada por vários fatores.
Para participar de modo ativo na sociedade, a primeira condição para o individuo é o domínio da língua, pois é ela quem faz a mediação entre o sujeito e a sociedade. Seja em sua forma oral ou escrita, por meio dela fazemos contato com o mundo e nos inserimos em sua dinâmica. Preti afirma que
nas grandes civilizações, a língua é o suporte de uma dinâmica  social que compreende não só as relações diárias entre os membros de uma comunidade como também uma atividade intelectual que vai desde o fluxo informativo dos meios de comunicação de massa até a vida cultural ou literária (PRETI, 2000, p.12).

Se a linguagem é influenciada pelos fatores socioculturais, qual o padrão linguístico usado por Jorge Amado para retratar o povo na obra Dona Flor e seus dois maridos?
É difícil falar o léxico de uma língua sem enveredar pela historia do seu povo. Por isso, antes de iniciar os aspectos dessa língua, faz-se necessária uma breve abordagem sobre o que é  língua e como ela é representada em nosso país.
Para Saussure ( 1989),  Língua  é um sistema de signos – um conjunto de unidades que se relacionam organizadamente dentro de um todo. É a parte social da linguagem, exterior ao individuo; não pode ser modificada pelo falante obedece às leis do contrato social estabelecido pelos membros da comunidade.

Assim como Saussure que separa língua de fala, ou o que é linguístico do que não é – Chomsky distingue competência de desempenho. Sendo a porção do conhecimento do sistema linguístico do falante que lhe permite produzir o conjunto de sentenças de sua língua. Conjunto de regras que o falante construiu em sua mente pela aplicação de sua capacidade inata para a aquisição da linguagem.

O acervo lexical de uma língua é dinâmico, porque suas unidades nascem, tem uma vida em que se transformam enquanto perduram e pode até morrer. Grande parte desse léxico é recebida por herança da língua que, historicamente, fornecem a base lexical ( como ocorreu com o latim vulgar em relação às línguas de origem  latina). Outra parte vem do aporte de línguas estrangeiras, no caso do português do Brasil, em diferentes fases, de línguas  africanas, do italiano, do espanhol e do francês.
As variações que ocorrem na língua através do tempo podem ser externas e internas, a externa pode ser descrita como a que ocorre em razão das funções sociais da língua e em sua relação com a comunidade linguística, a interna se relaciona ao léxico e à gramática; mudanças que ocorrem na fonologia, na morfologia e na sintaxe ( ILARI: BASSO, 2006).
Ilari e Basso( 2006) afirmam que podemos fazer comparação diacrônica da língua no intervalo de gerações para geração. É o caso das gírias e expressões, que podem fazer sentido para determinados indivíduos de uma geração e ser bastante conhecido por de outra, é importante perceber que na língua que falamos hoje convivem palavras e construções que remontam a épocas diferentes, notável isso  em trechos do livro quando  Jorge Amado utiliza a  linguagem informal principalmente a regional da Bahia que  é representada através  de palavras soltas, de expressões como frases feitas, jargões, a exemplo temos: animação retada( enorme), macheza( homem valentão ou machão), leito de ferro, tudo xixica para passar o tempo ( fofoca), mania de querer bulir na bichochota, deixa tua quiriquinha em paz, não vou deixar que mexa na peladinha, converse tapiativo, pitança( alimento que se serve em dia de festa), oxente ( interjeição, espanto) incontáveis tratantices ( atos de tratantes), sem eira nem beira( sem recursos, na miséria), a duras penas, roendo beira de penico, quando empombam, empombam de vez ( nervoso).
Ocorre também a variação diatópica, que devemos levar em consideração o fato de existir uma intensa migração interna no país, o que resulta em “ variedades linguísticas de procedências diferentes, entre as quais acabam se criando diferenças de status e prestígio”. 
Além das variações  existentes estudadas por Ilari e Basso, Marcos Bagno (2007, p. 47), acrescenta a variação diafásica, que afirma que cada falante utiliza a língua de forma diferenciada – diferença de graduação do informal para a formal – e isso diz respeito ao seu estilo, presente no livro em estudo, Dona Flor e seus dois maridos, nas seguintes expressões em que a linguagem formal faz referências a outras línguas: Latim:  ultimatum -  Digitalis communia stabilisata – Obra do Dr. Dinis; Francês baiano:  rafiné, non cheiri, quele merde, a locê de parler, vive a la godaça vis a vis; Italiano: sono fregato, sono futuro! Repetiu Pelancchi Moulas).
Quanto a linguagem literária empregada por Jorge Amado no Livro Dona Flor e seus dois Maridos, é utilizada um vocabulário denotativo, em que procuramos nos expressar com  uma linguagem clara e objetiva atentando para o sentido preciso dos vocábulos, no entanto, é grande o uso de um vocabulário conotativo, em que atribuímos um significado subjetivo, simbólico, figurado aos vocábulos, extrapolando seu sentido dicionarizado. Fazendo uso dessa linguagem conotativa, Jorge Amado emprega inúmeras figuras de linguagem, pensamento e construção, entre as quais a Sinestesia:  Vadinho: risada sonora e alegre de homem ladino e satisfeito com a vida, sua breve passagem por esse vale de lágrimas; Eufemismo: Ao partir dessa para uma melhor; Comparação: Rosilda, majestosa como um peru de roda; Hipérbole: Em torno do cadáver reunia-se uma pequena multidão a acotoverlar-se; Aliteração: numa revoada de risos; Polissindeto: nem sua voz, nem seu sorriso, de deboche, nem sua mão corrida, nem seu sono de fichas e paradas e por último a autonomásia: Dr Luís Henrique, um ruybarbosa de sabedoria.
Sabemos que a linguagem literária emociona e aproxima os seres humanos entre si. O homem contemporâneo apresenta sentimentos de desenraizamento em relação a tempo e espaço, uma sensação de não pertença, um estado de pânico perante o mundo e dificuldades no estabelecimento de contatos para com os outros. Apesar disso, tem uma profunda necessidade de fazer parte de algo. Nesse cenário, ao tecer mundos, a linguagem literária  toca, emociona e mobiliza o ser humano, tanto no nível racional como no emocional, e favorece uma vinculação do homem consigo mesmo, como os outros homens e com o mundo.
É por isso que segundo Jorge Amado, um livro surge às vezes de um acontecimento, de uma frase, de uma pessoa, assim como em Dona Flor e seus dois maridos. O romance é resultado de uma história real ocorrido na década de 30 na Bahia com uma senhora que, quando jovem, casara com um boêmio, jogador e mulherengo, morto logo depois do casamento. Tendo a cidade de Salvador, na Bahia como cenário, surge Flor, recatada professora de culinária e seus dois maridos. A linguagem utilizada no livro apresenta  um  vocabulário  riquíssimo e reflete a multiculturalidade  própria do Estado da Bahia, onde se desenrola a ação. 
Como qualquer representação de identidade ( que é sempre dinâmica e contextual), a baianidade-brasilidade construída por Jorge Amado, ao mesmo tempo que condensa elementos objetivos e observáveis em dado momento, distorce, inventa ou generaliza certos aspectos da sociedade brasileira.
Jorge Amado foi um escritor movido pela utopia de pensar e reinventar o Brasil – utopia que no inicio de carreira se traduziu na militância comunista, e com o passar dos anos, se transformou num elogio rasgado da mestiçagem e sincretismo. Seus retratos da Bahia parecem ganhar, sempre, voo próprio, alcançando um público enorme. O Brasil de Jorge Amado é, pois, multifacetado e descoberto por ângulos os mais inusitados, um deles é a linguagem.
Podemos então afirmar que não há um padrão linguístico definido por Jorge Amado no livro Dona Flor e seus dois maridos, embora, haja uma predominância da linguagem coloquial/regional, a ser comprovado nessas falas do personagem Vadinho: - La vou eu, minha russa do Tororó... "vamos vadiar, minha filha"; - Onde já se viu vadiar de camisola? Por que tu te esconde? A vadiação é coisa santa, foi inventada por Deus no paraíso, tu não sabe? - Que Deus me perdoe padre... Mas não parece que o anjo está fretando a santa? - Desculpe, Dom Clemente, mas é que esse anjo tem uma cara manjada de gigolô... Nem parece anjo... Espie o olho dele... olho de frete . . Padre, se Deus quisesse mostrar mesmo sua capacidade, fazia o 17 dar doze vezes seguidas. - Só uma bramota polar pode nos salvar a vida... "Sua puta, tu me paga!", Pois aqui estou, meu bem, cheguei indagorinha; - Tu está tão bonita, tu nem sabe... Tu parece uma cebola, carnuda e sumarenta, boa de morder... Quem tem razão é o salafra do Vivaldo... Bota cada olho em teu pandeiro, aquele fístula...- Não se zangue, meu bem... - Não posso estar  indo e voltando... Ou tu pensa que é uma viaginha de brinquedo, como ir daqui a Santo Amaro ou a Feira de Sant'Ana? Pensa que é só dizer "eu vou ali, já volto?" Meu bem, já que vim eu me instalo de uma vez... - Vem aqui, Flor, vem deitar junto de mim, vamos vadiar um pinguinho. Deita aqui, vamos rebolar nesse colchão cutuba.... Nessas falas podemos perceber que Jorge Amado  esbanja da linguagem de inúmeras formas deixando os seus romances com uma riqueza cultural enorme, percebemos claramente a afirmativa de Antunes ( 2007),  que diz que a língua é parte de nós mesmos, de nossa identidade cultural, histórica, social.  É a língua que nos faz sentir pertencendo a um espaço. É ela quem confirma nossa declaração. 
E como há várias influências distintas no português do Brasil em diferentes proporções. Fiorin (2004), ao tratar das questões ideológicas da formação das línguas, explica que se por um lado o sistema de uma língua não obedece totalmente a um parâmetro socioeconômico, por outro lado a língua é condicionada ideologicamente. Além disso, Antunes (2007), afirma que não existem usos linguisticamente melhores ou mais aceitos que outros existem usos que ganham mais aceitação por razões advindas do poder econômico e político da comunidade que adota.
A melhor maneira de promover uma política linguística que respeite e valorize as variantes utilizadas pelos falantes é o ensino porque as pessoas sempre sentiram compulsão para defender a integridade de sua língua por isso criaram “convenções”, normas, capazes de garantir a manutenção de identidade linguística, no entanto, nas escolas ainda prevalece o ensino de regras gramaticais, sem nenhuma reflexão ou adequação à realidade da comunidade linguística de que o aluno faz parte. 


REFERÊNCIAS


ANTUNES, Irandé. Muito Além da Gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. Ed. Parábola, 2007

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parabola, 2007.
BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais – primeiro e segundo ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasilia: Secretaria de Educação. MEC, 1997.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. 
FIORIN, J. L. Linguagem e ideologia. 8.ed. São Paulo: Ática, 2004.
ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato. O português da gente: a língua que estudamos a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2006.
NADIN DA SILVA, O. L. Das ciências do léxico ao léxico nas ciências: uma proposta de dicionário português –espanhol de economia monetária. Tese ( Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa ) -  Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa. Unesp, Araraquara. 2008.
PRETI, Dino. Sociolinguística: os níveis da fala: um estudo sociolinguístico do dialogo na literatura brasileira. 9. Ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2000.
SAUSSURE, F. Curso de Linguística geral. 15.ed. São Paulo: Cultrix, 1989.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Desafios nas redes sociais

A aprendizagem em espaços virtuais, como por exemplo, as redes sociais constitui um enorme desafio para a sociedade digital, na medida em q...